terça-feira, 1 de janeiro de 2008

OPINIÕES (II)

REVERSO
(...)

Todas as cidades do Reino são pouco agradáveis, todas fracas, todas sujas e todas edificadas, tanto os templos como as outras casas, feitas com uma arquitectura em tudo desproporcionada. A cidade de Lisboa, que não apenas é a mais nobre e a maior, mas se pode dizer que, por si só, e todo o Reino, é não somente fraca e desmuralhada, mas também a mais porca e a mais feia de todas. De facto, embora esteja situada nas margens de um tão grande rio e seja assaz acidentada, não tiveram ainda o simples engenho de cavar canais por onde as imundices corressem para o rio. Assim, convindo deitar as águas e todas as imundices pelas portas e janelas para a rua, as ditas ruas vêm a ser as condutas da porcaria. Além disso, as pretas costumam levar, de dia, para o mar, os bacios dos excrementos, que muitas vezes lhe caem pelas ruas e cerca do qual aqueles sábios, que sobre cada pêlo fizeram uma lei, não souberam ainda ordenar que sejam levados de noite. De todas estas coisas resulta uma lama e uma chuva contínua e um fedor enorme, pelo qual, e com razão, aquelas gentes usa sempre chapéu e borzeguins e anda a cavalo, porque, de outra maneira, se não poderia viver e ainda menos se, com o almíscar, o âmbar e o benjoim (que aqui, necessariamente, vem da Índia), não se fizesse uma defesa contra os maus cheiros.

Alojam-se as pessoas parcamente e porcamente porque a população é muita e as casas pouco cómodas, e aquilo que é de infinita mesquinhez é que, numa cidade tão grande, não exista sequer uma hospedaria, um quarto mobilado ou qualquer poiso onde um forasteiro ir alojar-se. Tanto assim é que, tendo uma vez aí chegado nobres de grande condição, foram forçados, no começo, a ir para certas tabernas fétidas onde vão os moços de fretes e os escravos. É verdade que, de há pouco para cá, existem duas casas de forasteiros, onde se pode ir, embora com mau tratamento. Todas as outras que lá há, além de serem muito sujas, cozem as viandas(1) na rua, sobre uns fogareiros de barro, de modo que, ao passar, se é perfumado pelo fumo das sardinhas e de outros peixes que remexem ad nunseam, porque carne há tão pouca que muitos não a comem.
(...)
(1) - Qualquer espécie de alimento

Fragmentos de textos sobre Lisboa do Século XVI
«RETRATO E REVERSO DO REINO DE PORTUGAL - 1578-1580»
(Extractos) in A.H. de Oliveira, Portugal Quinhentista (ensaios)

2 comentários:

José Norton disse...

Muito interessante! Também adoro Lisboa e a história dos seus lugares.

APS disse...

Caro José Norton
Agradeço vivamente o interesse manifestado pelo meu blog.
Vamos fazendo o que podemos. Tudo isto é resultado de grande dedicação por amor a Lisboa.
Fui até ao seu blog «O Último Távora», dentro de dias lhe deixarei um comentário.
Obrigado, um abraço de amizade
APS